A Ordem da Criação para o Relacionamento entre Homem e Mulher: Gênesis 1-2

A Ordem da Criação para o Relacionamento entre Homem e Mulher: Gênesis 1-2

Por Richard M. Davidson

Gênesis 1-2 constitui uma passagem bíblica fundamental, tanto para os que apóiam quanto para os que se opõem à ordenação de mulheres. Acaso esta passagem defende o divino ideal de plena igualdade de homens e mulheres, tanto em valor diante de Deus quanto em inter-relações igualitárias (não-hierárquicas) macho-fêmea, como aqueles que reivindicam a ordenação de mulheres alegam? Ou será que esta passagem apresenta uma ordem de criação de igualdade ontológica (em valor diante de Deus), mas de hierarquia funcional (diferentes papéis que envolvem a submissão feminina à liderança masculina), como os adversários da ordenação de mulheres insistem? Neste blog, que destila cerca de trinta anos de pesquisa pessoal sobre esta passagem, defendo que Gênesis 1-2 apresenta Adão e Eva não só como iguais em valor diante de Deus (ontologicamente), mas como parceiros iguais, sem hierarquia (funcionalmente).[1]

  1. Gênesis 1 nos ensina que homens e mulheres participam igualmente na imagem de Deus, tanto ontológica quanto funcionalmente. “E criou Deus o homem [Heb. ha’adam ‘humanidade’] à sua imagem, à imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou” (Gên 1:27).

Esta passagem fundamental (e seu contexto imediato) não deixa qualquer pista de uma ordem hierárquica na relação entre homem e mulher na criação divina. Aqui o homem e a mulher são totalmente iguais, sem subordinação de um para o outro. Homem e mulher juntos são abençoados e recebem o mandato de serem frutíferos, se multiplicarem e dominarem a terra; aos dois juntos é dado o domínio sobre a terra, e não o domínio do homem sobre a mulher (Gên 1:28).

Contrário à afirmação de que a designação por Deus da raça humana como “homem” sugere que há liderança masculina, a palavra ‘adam, muitas vezes traduzida como “homem”, é termo genérico para a humanidade, e nunca significa “homem” no sentido de sexo masculino nas Escrituras. Gênesis 1 proclama a igualdade fundamental do homem e da mulher, tanto em valor (feito à imagem/semelhança de Deus, na aparência exterior como no caráter) quanto na função ou “papel” (ambos em conjunto devem procriar, dominar a terra, e ter domínio sobre outro seres criados da Terra).[2]

A igualdade funcional, bem como ontológica do homem e mulher, como parte da ‘imago Dei’ é adicionalmente destacada com a analogia feita com a própria diferenciação e relacionamento de Deus ao contemplar a criação da humanidade. Dificilmente seria coincidência que apenas uma vez no relato da criação de Gênesis —em Gênesis 1:26, que diz respeito à criação da humanidade— Deus fala da divindade no plural: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança”. A explicação mais em consonância com o contexto imediato e a analogia da Escritura identifica esse uso como um “plural de plenitude”,[3] também chamado de “plural de comunhão ou comunidade dentro da Divindade”.[4] Este plural expressa “uma deliberação intra-divina” entre pessoas “dentro do Ser divino”.[5] Ao descrever as inter-relações divinas (“façamos”) que formam uma analogia com as relações humanas (“macho e fêmea”), não há nenhuma indicação de uma hierarquia na Trindade, nenhuma referência à submissão de uma pessoa a outra. Em vez disso, a ênfase é sobre a relação funcional de igualdade, na deliberação e na comunhão entre iguais.

  1. Gênesis 2 reforça Gênesis 1. Aqueles que defendem uma criação como liderança do homem sobre a mulher usam cinco argumentos principais para elaborar o seu argumento:
  2. A ordem da criação (o homem, depois a mulher);
  3. A natureza derivada da criação da mulher (a partir da costela de Adão);
  4. Deus fala com o homem e não com a mulher;
  5. A mulher é criada por causa do homem, para ser sua “ajudante”;
  6. A atribuição de nome da mulher pelo homem, indicando sua autoridade sobre ela.

Após um exame mais detido, nenhum desses pontos comprova uma hierarquia do homem sobre a mulher na criação; na verdade esses mesmos pontos servem para estabelecer a igualdade funcional, sem hierarquia, entre homem e mulher na criação. (1) No fluxo da narrativa de Gênesis 2, a mulher é criada por último como o clímax, a obra-prima da criação.

(2) Sua criação da “costela” de Adão (literalmente “lado”), e não de sua cabeça (domínio) ou do pé (ser governada), não indica seu papel derivado e, portanto, subordinado, mas sim que ela deve “estar a seu lado como uma igual” (Gên 2:21-22; Patriarcas e Profetas, 18).[6]

(3) Deus fala com Adão como o “chefe da família humana” pela única vez (Testemunhos, 1:307), “o pai e representante de toda a família humana” (Patriarcas e Profetas, 20). O nome pessoal de Adão, ‘adam, nunca mais adotado por qualquer outro indivíduo nas Escrituras, sendo a mesma palavra como para “humanidade”. Esta liderança representativa (não hierárquica) do “primeiro Adão” (1 Cor 15:45) foi usurpada por Satanás (João 12:31) e foi restaurada pelo segundo (“último”) Adão (1 Cor 15:45). Isso não serve para modelo de liderança masculina em geral.

(4) A mulher foi criada como ‘ezer kenegdo (“ajudadora comparável a ele,” Gên 2:18, NTLH) do homem, que no original não denota um auxiliar ou assistente subordinado; alhures nas Escrituras muitas vezes o próprio Deus é chamado de ‘ezer (“ajudador”): Êxodo 18:04, Deuteronômio 33:7, 26, Salmos 33:20, 70:5, 115:9, 10, 11. A palavra kenegdo em Gênesis 2:18 significa nada menos do que um parceiro igual, um “companheiro” (Gên 2:18, 22, NVI).

(5) Finalmente, ao contrário da suposição comum, Adão não dá nome à mulher (e, assim, exerce autoridade sobre ela) antes da queda em Gênesis 2:23. Os “passivos divinos” neste versículo deixam implícito no hebraico que a designação de “mulher” vem de Deus, não do homem.[7] Adão não dá nome a Eva até depois da queda (Gn 3:20), e até mesmo esta “atribuição de nome” não é um exercício em liderança, mas prevê o papel de Eva como mãe de todos os viventes, culminando finalmente em sua descendência messiânica.

Em suma, Genesis 2, como Gênesis 1, não contém ordem de criação da subordinação da mulher ao homem ou que a restrinja de entrar em plena e igual participação com o homem em qualquer ministério para o qual Deus pode chamá-la. Gênesis 1-2 apresenta Adão e Eva como totalmente iguais, tanto ontologicamente (em valor diante de Deus) quanto funcionalmente (em sua parceria igualitária, sem hierarquia).


[1] Para ler uma análise mais detalhada, veja Richard M. Davidson, Flame of Yahweh: Sexuality in the Old Testament (Peabody, MA: Hendrickson, 2007), 24-35; Ibíd., “Headship, Submission, and Equality in Scripture,” en Women in Ministry, ed. Nancy Vyhmeister (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1998), 260-264.

[2]  Para uma discussão dos vários aspectos do que a “imagem de Deus” inclui, ver Richard M. Davidson, “Biblical Anthropology and the Old Testament” (Third International Bible Conference, Jerusalem, Israel, June 16, 2012), 2-18.

[3] Gerhard Hasel, “The Meaning of ‘Let Us’ em Gn 1:26”, Andrews University Seminary Studies 13 (1975): 58-66, a citação é da p. 64.

[4] Jiří Moskala, “Toward Trinitarian Thinking in the Hebrew Scriptures”, Journal Adventist Theological Society 21, no. 1-2 (2010): 258; ver sua crítica dos outros pontos de vista, 249-259.

[5] Hasel, “The Meaning of ‘Let Us’ em Gn 1:26”, 65.

[6] Alguns têm tomado a declaração de Elena White de que Eva era “para ser amada e protegida por ele [Adão]” (Patriarcas e Profetas, 18) como uma indicação de chefia hierárquica masculina, mas a proteção aqui implica uma maior força física, não hierarquia! Os guarda-costas do líder do governo são protetores, mas isso não torna o líder subordinado a eles.

[7] Ver Jacques Doukhan, The Genesis Creation Story (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1978), 46-47.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *