O Pastorado é o mesmo que o Sacerdócio Levítico?

O Pastorado é o mesmo que o Sacerdócio Levítico?

Daniel A. Mora

 

No estudo sobre a ordenação de mulheres para o ministério, os que são contra se apoiam em ideias teológicas que demonstram uma diversidade de posições a respeito dos dons e ministérios. Os hierárquicos (aqueles que entendem que homens estão em uma posição superior em relação as mulheres) usaram diferentes argumentos, para “mostrar” que a Bíblia não favorece essa prática. O argumento mais utilizado é que o ministério do pastor-mestre é uma extensão do sacerdócio levítico. A analogia é simples: “Se não houve sacerdotes mulheres no Antigo Testamento (AT), também não pode haver mulheres como pastoras no Novo Testamento (NT)”. Em suma, o sacerdócio levítico foi transformado em ministério pastoral.

Esta suposição não tem fundamento bíblico, e passa por alto a hermenêutica que, como adventistas, temos usado desde a fundação do movimento e que obviamente, se reflete nas crenças e afirmações teológicas. Os pioneiros sustentavam o conceito do “sacerdócio universal de todos os crentes”, considerando a ordenação através de uma perspectiva de funcionalidade e não a partir de uma compreensão sacramental.

O sacerdócio levítico

O propósito de Deus no AT, era que todo o seu povo fosse sacerdócio real (Êx. 19:6), mas a rebelião do povo ao pé do Monte Sinai, fez com que Deus escolhesse a tribo de Levi – aqueles que permaneceram fiéis a Deus e contra a adoração ao bezerro de ouro – para servir no templo no lugar dos primogênitos hebreus (Êx. 32: 25-29; Núm. 3:11-13; 8:16-18). É verdade que no AT não havia mulheres no sacerdócio, da mesma forma como não havia sacerdotes, do sexo masculino, que fossem gentios ou de outras tribos de Israel; que não pertencessem aos descendentes de Levi (Núm. 3: 11-13; 8: 16-18); também não havia sacerdotes do sexo masculino com qualquer defeito físico (Levítico 21:17-21), e os únicos que poderiam ter acesso ao sacerdócio eram os descendentes diretos de Arão. (Êx. 18:6,7). Então, de acordo com as passagens bíblicas mencionadas, as mulheres não eram as únicas excluídas do sacerdócio no AT.

O ministério pastoral

A palavra grega ποιμήν, que significa pastor aparece cerca de 17 vezes no Novo Testamento (NT), tem vários significados: (1) literalmente: pastores de Belém (Mat. 9,36; Mar. 6:34; Luc. 2, 8, 15, 18, 20); (2) forma tipológica: Cristo como o verdadeiro pastor das ovelhas (João 10:2, 11, 12, 14, 16), o pastor supremo da Igreja (Heb. 13:20; 1 Pedro 2:25, 5: 4); (3) metaforicamente: representa o ministério exercido por uma pessoa (Efes. 4:11). O uso no plural Ποιμένας não aparece em nenhum outro lugar no NT. Ao contrário do sacerdócio levítico, o pastor-mestre[1] não é um cargo hereditário, não tem restrições de raça, condição social ou gênero. É um dom dado por Cristo através do Espírito Santo.

O sacerdócio levítico no Novo Testamento

No NT não foi encontrada uma única passagem que apoie a ideia de continuidade do sacerdócio levítico através do pastor, do bispo ou do padre. Entretanto, encontramos nele uma exposição detalhada do porque esse sistema sacerdotal não é mais aplicável. O apóstolo Paulo, no livro de Hebreus, expõe as razões da ineficiência deste sacerdócio (levítico) em relação ao de Cristo:

Cristo é descendente da linhagem de Melquisedeque. Sendo assim, Cristo não descende dos levitas, o que interrompe a linhagem levítica. O sacerdócio de Cristo é superior ao de Levi (Heb. 7:1-28). É digno de nota como Paulo é enfático na anulação do sacerdócio levítico, quando ele diz: “Portanto, a regra antiga fica sem efeito, por se ter mostrado incapaz e inútil”. (Heb. 7:18). O termo grego Ἀθέτησις (atetose), significa a revogação de um documento legal por outro. A predição do sacerdócio de Jesus segundo a ordem de Melquisedeque indicava que o sacerdócio Araônico (Levítico) seria transitório: “De sorte que, se a perfeição fosse pelo sacerdócio levítico (porque sob ele o povo recebeu a lei), que necessidade havia de que outro sacerdote se levantasse, segundo a ordem de Melquisedeque, e não fosse chamado segundo a ordem de Arão”?
Paulo responde a pergunta: “Porque quando há uma mudança no sacerdócio tem de haver também uma mudança de lei.” (Heb 7:12).

A melhor aliança. A ideia básica de Paulo é que o sacrifício de Cristo é a garantia da nossa salvação (Heb. 8:1-3). Nos versículos 4 e 6 de Hebreus 8, o apóstolo continua explicando que o sacerdócio levítico foi transitório e que o Templo era uma figura do santuário celeste. A aliança de Cristo é melhor que o pacto anterior, não porque o antigo fosse ruim, mas porque tinha defeitos. Esta nova aliança é entre Cristo e todos os crentes (vv. 8-12). Assim, ele termina dizendo: “Ora, ao chamar de uma nova aliança, Deus tornou a primeira obsoleta, e o que caducou e ficou velho desaparecerá depressa (será destruído)” (v. 13). A palavra grega ἀφανισμοῦ, é um derivado da palavra traduzida como destruição.

No capítulo 9, Paulo faz uma comparação entre a antiga aliança e a nova, mantendo a mesma ideia: “o Sacerdócio de Cristo anula e suprime o sacerdócio antigo (levítico ou Araônico).” As explicações são muito óbvias (ver todo o capítulo).

O sacerdócio levítico é cancelado. As funções do sacerdote no AT, tiveram seu tempo e lugar, até que coisas melhores aconteceram, isso é, a vida, ministério, morte e ressurreição de Cristo. O fato de que o véu do templo terrestre tenha se rasgado quando Jesus morreu, simboliza que agora temos uma nova e melhor aliança e sacerdócio. Sendo assim, todas as leis do sacerdócio levítico ficaram anuladas. Ellen White também é enfática sobre isso: “Ao morrer Jesus no Calvário, exclamou: ‘Está consumado’, e o véu do templo partiu-se de alto a baixo. Isto deveria mostrar que o serviço no santuário terrestre estava para sempre concluído, e que Deus não mais Se encontraria com os sacerdotes em seu templo terrestre, para aceitar os seus sacrifícios.”[2]

O sacerdócio de todos os crentes

             Em I Pedro 2:9-10, o apóstolo declara: “Convosco porém não é assim, porque são geração escolhida, sacerdócio real, nação santa, povo que pertence a Deus para proclamar as admiráveis obras daquele que vos chamou das trevas para a sua luz maravilhosa”. Aqui, Pedro cita várias passagens do AT diretamente (Isaias 26:16; Salmos 118:22; cf. Isaías 8:14-15) e indiretamente (Isaías 43: 20-21; Êxodo 19: 6; Oseias 2:25). Agora, em Cristo, todos os crentes são sacerdotes e reis. Não há distinção entre judeu e gentio, mulheres e homens, escravos e livres (Gálatas 3:28). Ao se batizar, o crente se torna herdeiro do reino de Deus (rei) e ministra (sacerdócio) para si mesmo e para outros. Isso enfatiza que, tanto homens como mulheres, como sacerdotes, devem: [1] ser representantes de Deus (II Cor. 5:20); [2] levar o reino de Deus aos outros (Mat. 28:19-20); [3] representar a Igreja e ministrar por meio dos dons ou ministérios que o Espírito Santo outorga independentemente do gênero (I Cor 12; Ef. 4:11-12) e apresentar suas vidas como sacrifício vivo diante de Deus (Romanos 12:1). O NT resgata princípios do AT (Êx. 19:6), de um povo que foi chamado por Deus.

No livro de Apocalipse, os remidos louvam a Cristo, porque através de Seu sacrifício que foram feitos sacerdotes e reis (Apoc. 1:6). Todo o livro de Apocalipse é cheio de cenas salvíficas e redentoras que reivindicam o governo de Deus. Além disso, como os remidos poderiam entrar no santuário celestial para prestar homenagem e louvor a Deus se eles não são sacerdotes? As conclusões apocalípticas são conclusivas e categóricas: As únicas pessoas que vão entrar no céu são os crentes que aceitaram a Cristo como seu salvador e tornaram-se reis e sacerdotes para Deus (Apoc. 20:6), e reinaram com Cristo durante o milênio. O verbo grego ἐποίησεν, “nos fez” é aoristo. Ou seja, quer dizer que estes já foram resgatados e feitos “sacerdotes e reis” porque a aliança de Cristo, selada com a sua morte na cruz, é superior á de Levi.

Os hierarquizados têm chegado ao ponto de ensinar que o sacerdócio, embora tenha sido dado a todos os crentes, só pode ser exercido por um grupo especial e superior ao resto da Igreja. Assim como no AT. Mas, o problema é que no NT não houve nenhuma rebelião contra Deus, para que o sacerdócio tenha se limitado a apenas um grupo. Sendo assim, não existe nada no NT que afirme ou mesmo que sugira esse tipo de ensinamento.

Por outro lado, a crença no sacerdócio de todos os crentes é um dos pilares do protestantismo e, consequentemente, dos adventistas. Ellen White escreveu extensivamente sobre o fato de que homens e mulheres são sacerdotes em Cristo. Em seus escritos existem umas 134  referências (em inglês) ao “sacerdócio real” de todos os crentes. Referindo-se aos remidos escreveu: “Uma ‘mitra limpa’ é-lhes colocada sobre a cabeça. Serão como reis e sacerdotes para Deus… Estes são os que se acharão sobre o Monte Sião com o Cordeiro, tendo escrito na fronte o nome do Pai.”[3] “Vi então tronos, e Jesus e os santos remidos sentarem-se sobre eles; e os santos reinaram como reis e sacerdotes para Deus.”[4] “Nesse tempo os justos reinam como reis e sacerdotes de Deus.”[5] Entre outras referências.[6]

Conclusões

No debate sobre a ordenação de mulheres, essa comparação não é pertinente, por diferentes razões:

O sacerdócio levítico tipificava a obra de Cristo (que não era levita mas da linhagem de Melquisedeque), sendo então transitório. Paulo foi enfático na anulação do sacerdócio levítico. Aonde existe algum texto no NT que ensine sobre a continuidade do sacerdócio? Não existe, tudo o que há são meras inferências.

Não há nada nos escritos de Ellen White sugerindo uma continuidade. Somente por especulação se pode dizer que o sacerdócio levítico está em vigor e forçando a associação do termo pastor/ancião/bispo com sacerdote, ou o ministério pastoral com o sacerdócio.

Aqueles que forçam essa relação, o fazem com base no gênero. Se os pastores são equivalentes aos sacerdotes do AT, então eles devem ser descendentes estritamente de judeus, da linhagem de Arão e não podem ter defeito físico algum. De acordo com essa ideia, todos os pastores que não são descendentes de Levi, deveriam ser removidos do ministério. Se os hierárquicos não aceitam isso, é simplesmente porque usam o preconceito para excluir ás mulheres.

Se o sacerdócio levítico estivesse em vigor, deveríamos destruir a carta aos hebreus, porque nela, o apóstolo Paulo não deixa dúvidas sobre o seu cancelamento. Por outro lado, o sacrifício de Cristo seria inútil, porque continuaríamos dependendo de sacerdotes levitas.

O sacerdócio de todos os crentes seria anulado. Porque no AT, o povo foi declarado sacerdócio real (Êx. 19:6), entretanto, adoraram o bezerro de ouro e por isso o sacerdócio foi restringido à tribo de Levi. Em que parte do NT está escrito que o sacerdócio real foi transferido aos pastores como representantes de todos os crentes? Nenhum crente poderia oferecer seu corpo como sacrifício vivo, teria de ir ao seu pastor para que este interceda por ele diante de Cristo – cancelando a Cristo como único intercessor. Além disso, não seria sacerdócio de todos os crentes, mas somente de alguns.

O conceito de que o sacerdote do AT é o pastor ou o ancião/bispo, é um conceito católico. Eles usaram esta comparação para estabelecer um sacerdócio, que foi mais pagão do que cristão. Inventaram isso com o propósito de destruir o sacerdócio de Cristo e, assim, tomar o seu lugar como “cabeça da Igreja.”

Em relação ao ministério, a Igreja não representaria a Cristo, mas somente o clero. A comissão evangélica dada a todos os crentes (para pregar e batizar), seria substituída pela sucessão sacerdotal.

Esse conceito católico foi absorvido pelo calvinismo e é daí que os hierárquicos copiaram essa teologia. Como adventistas, não podemos aceitar esse ponto de vista. Ver o Tratado de Teologia Adventista, Crenças Fundamentais e todos os documentos oficiais da denominação.


Nota: Citações bíblicas foram retiradas da versão Portuguese Modern Language Translation, 2005 (SBP).

Traducción: Daniel A. Mora / Corrección: Terbia Leal.

[1]De todos os usos de ποιμήν, não há nenhum caso no NT onde um homem foi ordenado pela imposição de mãos para o exercício do pastorado. Além disso, se observou que algumas versões como a RV60, usa a palavra “pastores” em Hebreus 13: 7, 17, 24, no entanto, o texto grego está falando sobre líderes. O verbo grego. ἡγουμένων aparece em todos esses casos, e de outras formas Novo Testamento (Lucas 22:26; Atos 7:10). Esta mensagem de Paulo aos “líderes”, mostra que o termo é plural, incluindo homens e mulheres.

[2]Ellen White, Primeiros Escritos (São Paulo: Casa Publicadora Brasileira, 2007), 253.  Ênfase adicionada. Em diante PE.

[3]Ellen White, Conselhos para a Igreja (São Paulo: Casa Publicadora Brasileira, 2007), 362.

[4]Ellen White, História da Redenção (São Paulo: Casa Publicadora Brasileira, 2008), 416.

[5]Ellen White, O Grande Conflito (São Paulo: Casa Publicadora Brasileira, ¿¿??), 660. Em diante GC.

[6]Ellen White, Conselhos para a Igreja (São Paulo: Casa Publicadora Brasileira, 2007), 362; idem, Conselhos sobre Mordomia (São Paulo: Casa Publicadora Brasileira, 2007), 82; idem, GC, 645; idem, PE, 51, 290; idem, Testemunhos para Ministros e Obreiros Evangélicos (São Paulo: Casa Publicadora Brasileira, 2008), 287; idem, Filhos e Filhas de Deus (São Paulo: Casa Publicadora Brasileira, 2004), 287; idem, E Recebereis Poder (São Paulo: Casa Publicadora Brasileira, 1955), 372.

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